sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Quando o acadêmico quer ser professor...

Uma das leituras produtivas que fiz em uma disciplina do mestrado tem me ajudado muito a pensar na minha prática atual.

É a entrevista do sociólogo François Dubet para a Revista Brasileira de Educação. Transcrevo alguns trechos abaixo. O texto completo taqui.

É incrível mesmo como o autor sintetiza momentos muito semelhantes aos vividos atualmente em sala de aula. É perfeito. A diferença é que ele tá falando de escolas na periferia de Paris (escola é escola, só muda o endereço?).

É de extrema importância para quem pensa a educação dentro da academia e chega pouco perto da vivência do giz, gritos e cadeiras voando. Lá vai.

"Por quê, enquanto pesquisador, você escolheu lecionar por ano em um colégio?

Eu quis ensinar durante um ano por duas razões um pouco diferentes.

A primeira é que nos meus encontros, coletivos ou individuais, com professores, eu tinha a impressão de que eles davam descrições exageradamente difíceis da relação pedagógica. Eles insistiam muito sobre as dificuldades da profissão, a impossibilidade de trabalhar, a queda da nível dos alunos, etc. e eu me perguntava se não era um tipo de encenação um pouco dramática do seu trabalho.

A segunda razão é que, durante uma intervenção sociológica com um grupo de professores, encontrei duas professoras com uma resistência muito grande ao tipo de análise que eu propunha. Elas deixaram o grupo. Uma delas escreveu uma carta em que me criticava particularmente por não ter lecionado, de ser um “intelectual”, de ter uma imagem abstrata dos problemas. Foi um pouco por desafio que eu quis dar aulas para ver do que se tratava.

Devo dizer que esta experiência não era nada central para mim já que não era o coração do meu trabalho de pesquisa; nunca imaginei seriamente escrever um livro sobre a minha experiência de ser professor. Assumi uma classe de cinquième, 2º ginasial (que começa após os cinco anos de escola elementar), com crianças de 13/14 anos, em um colégio popular, bastante difícil em que o nível dos alunos é baixo e dei aulas durante um ano. Portanto, da volta às aulas em setembro até o mês de junho, quatro horas por semana, ao lado das minhas atividades de acadêmico, de chefe de departamento, me esforcei para ser um professor razoável. Ensinei história e geografia já que são disciplinas que me interessavam e que não requeriam uma formação específica como o inglês ou as matemáticas, pelo menos no nível escolar em que eu trabalhava.

Podemos dizer muitas coisas sobre esta experiência.

Logo, me dei conta de que a “observação participante” era um absurdo. Durante duas semanas, tentei ficar abservando, isto é, ver a mim mesmo dando aula. Mas após duas semanas, estava completamente envolvido com o meu papel e eu não era de maneira alguma um sociólogo, embora estivesse me esforçando para manter um diário de umas cinqüenta páginas no qual redigi minhas impressões. Entretanto, não acredito que se possa fazer pesquisa se colocando no lugar dos atores; eu acho que é um sentimentalismo sociológico que não é sério ou que supõe muitas outras qualidades diferentes das minhas. Contudo, eu fiz este trabalho em boas condições pois fui muito bem acolhido pela grande maioria dos professores que ficaram bastante sensibilizados pelo fato de eu ir dar aulas e tive realmente muito apoio, muita simpatia (...) Alias, não é preciso esconder que o fato de que ser um homem no meio de mulheres pode também ajudar. Era um clima bastante agradável.

A minha primeira surpresa, e que é fundamental, corresponde ao que os professores dizem nas suas entrevistas. Os alunos não estão “naturalmente” disposto a fazer o papel de aluno. Dito de outra forma, para começar, a situação escolar é definida pelos alunos como uma situação, não de hostilidade, mas de resistência ao professor. Isto significa que eles não escutam e nem trabalham espontaneamente, eles se aborrecem ou fazem outra coisa. Lá, na primeira aula, os alunos me testaram, eles queriam saber o que eu valia. Começaram então a conversar, a rir (...) Um aluno, um menino que estava no fundo da sala, fazia tanto barulho que eu pedi para ele vir se sentar na frente. Ele se recusou. Fui buscá-lo, o levantei e o trouxe para frente. Ele gritava: “Ele vai quebrar meu ombro!” Bom, finalmente, depois de dez minutos, houve um contato (...) fiquei muito contente que o menino tivesse 13 anos, pois se tivesse pego uma classe de troisiéme (3º ginasial) e que o menino tivesse 1,80 m e pesasse 75 quilos, eu estaria com problemas. Ou se fosse uma jovem professora de 22 anos, não sei como teria reagido.

A minha segunda surpresa: é preciso ocupar constantemente os alunos. Não são alunos capazes de fingir que estão ouvindo, sonhando com outra coisa e não fazer barulho. Se você não os ocupa com alguma coisa, eles falam. É extremamente cansativo dar aula já que é necessário a toda hora dar tarefas, seduzir, ameaçar, falar (...) Por exemplo, quando a gente fala “peguem os seus cadernos”, são cinco minutos de bagunças porque eles vão deixar cair suas pastas, alguns terão esquecidos seus cadernos, outros não terão lápis. Aprendi que para uma aula que dura uma hora, só se aproveitam uns vinte minutos, o resto do tempo serve para “botar ordem”, para dar orientações. Tive muitas dificuldades. Por exemplo, não sabia como contar histórias e fazer com que os alunos escrevessem ao mesmo tempo. Se eu contasse a história de Roland e de Carlos Magno, os alunos me escutavam como se contasse um conto de fadas e não escreviam nada. E quando escreviam, obviamente, não estendiam nada do que eu dizia, eles perguntavam se era para escrever com caneta azul, vermelha ou sublinhar (...) É extremamente difícil e eu tive uma grande agitação na sala, muito penosa, que durou mais ou menos dois meses. Durante estas dificuldades, falei disso com os meus colegas. Disse a meus colegas que eles bagunçavam e eu estava mais surpreso com a minha bagunça porque, tendo sido assistente muito jovem ainda, nunca tive a menor sombra de um problema desta natureza. Porém lá, de cara, eu não controlava nada e os meus colegas apreciavam talvez que eu tivesse tido problemas, já que alguns me ofereceram um livro: Comment enseigner sans stress? (como ensinar sem estresse?). Talvez eu pudesse dizer que sentia dificuldade porque meu status social me permitia dizê-lo sem ter o sentimento de vergonha. Pode ser mais duro para um professor iniciante.

Você disse que fez um golpe “golpe de estado”.

Depois de dois meses, eu estava um pouco desesperado: eu não consegui nunca dar a aula. E então um dia, fiz um “golpe de estado” na sala. Disse aos alunos: de hoje em diante não quero mais ouvir ninguém rir, não quero mais agitação. Aliás, não era bagunça, era agitação. Eu disse: vocês vão colocar as suas cadernetas de correspondência, a caderneta em que se colocam as punições, no canto da mesa, e o primeiro que falar, eu escrevo a seus pais, e ele terá duas horas de castigo. E durante uma semana foi o terror, eu puni. De fato facilitou a minha vida e tenha a impressão de que esta “crise” deu aos alunos um sentimento de segurança, já que eles sabiam que havia regras, eles sabiam que nem tudo era permitido. Depois, as relações se tornaram bastante boas com os alunos e bastante afetuosas. É preciso reter desta história extremamente banal que o fato de ser sociólogo pode permitir explicar o que acontece, mas não antecipar melhor que a maioria das pessoas.

Como acaba se construindo uma relação com os alunos?

Sem me dar muito conta disso, os alunos eram sensíveis ao fato de eu me interessar por eles como pessoas, isto significa que eu falo com eles, eu me lembro de suas notas, de suas histórias (...) No fim do ano, eles gostavam muito de mim. Me deram presentes. Fizeram uma festa quando eu fui embora. Enfim, eles me suportavam. E eu também. Era uma relação muito complicada já que era ao mesmo tempo afetivo, muito disciplinar e muito rígido. Com os alunos, digamos que eu tive o sentimento que começava a aprender pouco a pouco a dar aulas. Quando olho para meus colegas, havia muitos deles que eram muito fortes, que davam boas aulas. Havia outros que visivelmente, não conseguiam. O que me chamou a atenção, foi o clima de receio para com os alunos na sala dos professores. Isto quer dizer que alguns professores tinham medo de entrar na sala. Não era um colégio violento. Não havia agressões, não havia insultos mas era obviamente uma provação; como fazê-los trabalhar, como fazer com que ouçam, como fazer com que não façam barulho? Esta não é a dificuldade, não é a violência.

O que este “golpe de estado” mudou fundamentalmente?

Para mim foi muito negativo porque a gente se sente reduzido a expedientes. Fiz reinar o terror durante algumas semanas e depois relaxei. Mas eles sabiam que todos os meses, eu teria recomeçado. No fundo eu estava persuadido, como professor universitário, que a gente podia jogar com a sedução intelectual. Falando bem e sabendo mais coisas do que eles, eu achava que podia seduzí-los intelectualmente. Nenhum efeito. Foi preciso mobilizar muitos registros, sedução pessoal, ameaças, disciplina, que desconhecia completamente, que nunca havia usado na minha vida universitária. Mas é uma história fracamente controlada. Isto significa que a gente não consegue observar e dar aula ao mesmo tempo. A gente dá aula e só faz isso. Depois de alguns anos, talvez se tenha experiência suficientes para ver as coisas e fazê-las ao mesmo tempo mas, neste ano, me comportei como um iniciante. O “golpe de estado” é um fracasso pedagógico e moral, mas permitiu fixar uma ordem bastante estúpida a partir da qual a gente pode tentar controlar uma relação pouco regulada. De fato, no colégio, é preciso trabalhar na transformação dos adolescentes em alunos quando eles não têm vontade de se tornar alunos.

Podemos fazer observações muito banais sobre a heterogeneidade das classes. Estamos lidando com alunos extraordinariamente diferentes em termos de performances escolares. Somos obrigados a dar aula a um aluno teórico, um aluno médio que não existe, tendo de certa forma o sentimento de que vamos deixar um pouco de lado os bons alunos, porque existem, e que vamos deixar de lado os maus alunos.

Outra coisa que me chamou a atenção, são alunos que, depois de dois meses, “entraram em greve”, alunos que nada fizeram. Tiravam zero em todas as provas, não faziam nada, eram muitos gentis mas tinham decidido que não trabalhariam. É complemente desesperador: no início eu os puni e no fim não os punia mais, já não adiantada, tê-los-ia punido todos os dias.

Os alunos são adolescente completamente tomados pelo seus problemas de adolescente e a comunidade dos alunos é “por natureza” hostil ao mundo de adultos, hostil ao professores. Eles podem encontrar um professor simpático, eles podem encontrar um professor interessante, mas de qualquer forma, eles não entram completamente no jogo. Eles permanecem nos seus problemas de adolescência, de amor, de amizade e o professor fica sempre um pouco frustado porque, mesmo se alunos queiram, individualmente, estabelecer relações com os professores, coletivamente, eles não querem tê-las.

Eis um pouco do que eu absorvei e devo dizer que isto correspondia exatamente ao que diziam os professores nas entrevistas individuais ou coletivas. Eles não exageravam. É realmente uma situação em que a gente tem grandes dificuldades para conquistar os alunos. É um trabalho que se recomeça a cada dia embora, repito, não se trate de alunos malvados, agressivos, racistas, mas antes alunos fracos em geral."


Fonte:

DUBET, François. Quando o sociólogo quer saber o que é ser professor: entrevista com François Dubet. São Paulo, Revista Brasileira de Educação, n. 5, maio/ago. 1997, p. 222-31.

Um comentário:

Carmen disse...

OI LIA!
Adoro esse texto; tive a oportunidade de ler na disciplina "Ensino e Identidade Docente", da Faculdade de Educação, durante a graduação. Comentei algumas vezes no ISE, mas ninguém demonstrou interesse em ler.
É muito legal mesmo ver como ele toca em pontos que a gente experencia em sala de aula.
Beijos e saudades! Carmen.